A semente que ele plantou sem saber

Ele carregava os passos com a calma de quem já não tinha pressa.
Seu nome era Samuel. Professor de história por quarenta anos, agora aposentado, passava as tardes entre o
banco da praça, os livros do sebo e o hábito de observar. Nunca se casou. Vivia só, mas nunca parecia
solitário. Tinha um olhar que escutava.
Gostava de andar com um livro debaixo do braço. Às vezes lia. Às vezes apenas carregava, como quem
carrega um amuleto ou uma ideia que não quer esquecer. Era um velho volume de capa verde, gasto nas
bordas, com o título quase apagado: A Alma do Mundo.
Naquela terça-feira cinzenta, viu um menino sentado na calçada em frente à escola, chutando pedrinhas com
cara de tédio. Era início de férias. As mochilas haviam sido esvaziadas. O tempo, agora, era um terreno vasto
demais.
— Gosta de histórias? — perguntou Samuel, aproximando-se.
O garoto o olhou, meio desconfiado. Depois deu de ombros.
Samuel então estendeu o livro. — Esse aqui não tem monstros, nem heróis, mas talvez tenha algo que te
acompanhe por muito tempo.
O menino pegou. Folheou. Fez menção de agradecer, mas não disse nada.
Samuel sorriu, assentiu com a cabeça e continuou seu caminho.
Não se encontraram mais.
O menino cresceu, mudou de cidade, formou-se, teve filhos. O livro ficou guardado numa caixa de papelão
por anos, junto com lembranças confusas da infância.
Até que um dia, já adulto, enfrentando uma crise de propósito e cansaço da rotina, abriu aquela caixa por
acaso.
Ali estava o exemplar esquecido. Ao folheá-lo, sentiu algo que não sabia nomear. Era como reencontrar uma
parte de si que nunca tinha desaparecido — apenas adormecido.
As páginas falavam de sabedoria simples, de humanidade, de perguntas sem respostas rápidas. E,
principalmente, de uma alma coletiva que nos conecta a algo maior, mesmo nas ações mais pequenas.
Ele leu tudo em uma noite.
E chorou.
Na semana seguinte, aquele homem — agora pai, professor, cidadão — começou a mudar sutilmente. Passou
a olhar mais nos olhos dos alunos. A deixar bilhetes nas carteiras. A cultivar escuta nas conversas com os
filhos. E a escrever textos que começaram a tocar pessoas, mesmo sem que ele soubesse.
Tudo começou com um livro que recebeu sem saber por quê. De um senhor cuja presença já se desfez no
tempo, como folha seca levada pelo vento.
Mas a semente havia sido plantada.
E germinou.
Samuel nunca soube.
Nunca soube que aquele gesto despretensioso — entregar um livro a uma criança na calçada — acendeu um
fio invisível que atravessaria décadas. Nunca soube que seu nome seria citado num artigo de agradecimento
publicado muitos anos depois, por um professor chamado Diego, que começava seu texto com a frase:
“Este é um agradecimento a alguém que talvez já nem esteja mais neste plano.”
Mas isso não importava.
Porque Samuel nunca fez por saber. Fez por fazer. Como quem respira sem esperar reconhecimento pelo
oxigênio que oferece.
Ele realizou para além do ego.
É sobre isso que o PRÓ-VIDA sempre falou. E é isso que o sagrado ensina no silêncio dos dias comuns: o
gesto que não espera retorno, a bondade que não faz alarde, o ato que não precisa de palco.
A verdadeira realização nasce no invisível.
E o sagrado mora nos bastidores do cotidiano.
Samuel era um semeador. Seus gestos não eram grandes. Eram reais. E isso bastava.
Porque há sementes que não brotam no tempo que o olho alcança. Mas, quando brotam, transformam
paisagens inteiras — dentro e fora de quem as recebe.
Hoje, no banco da praça onde Samuel costumava sentar, há um grafite discreto pintado no muro:
“Obrigado, professor desconhecido. O mundo ouviu sua história.”
Ninguém sabe quem escreveu.
Mas talvez ele tenha sorrido — de algum lugar.

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