Todas as manhãs, às oito em ponto, o ritual começava.
O sr. Ernesto, já com seus 79 anos, dobrava o pano branco, espanava com delicadeza o encosto de palhinha e
puxava a cadeira levemente para a posição exata ao lado da sua.
Era sempre o mesmo gesto. Mesmo nos dias nublados. Mesmo nos domingos de silêncio. Mesmo sem
ninguém sentado ali.
Era a cadeira de Rosa.
Sua esposa por 51 anos. Parceira de café, de orações, de perdas e doçuras. Partira há três anos, após uma
batalha curta com a doença, mas longa o bastante para que os dois se despedissem com os olhos — sem
precisar dizer adeus.
Desde então, Ernesto não deixou de arrumar a cadeira.
A vizinhança achava aquilo bonito. Ou estranho. Alguns diziam que era uma forma de manter viva a
memória. Outros achavam exagero.
Mas Ernesto não fazia para mostrar. Fazia porque, para ele, aquela presença permanecia.
Na verdade, não era apenas uma cadeira.
Era um altar.
Era ali que sentia Rosa. Na xícara posta, no guardanapo dobrado, na migalha imaginária que ele ainda
limpava sorrindo. Era ali que praticava, sem nomear, a disciplina invisível de continuar amando mesmo sem
resposta.
Ele dizia a si mesmo:
— É preciso cuidar até da ausência.
Como quem cuida de uma esperança.
Até que, numa quarta-feira de sol amarelo, quando já estava sentado diante das duas xícaras fumegantes,
alguém bateu no portão.
Era uma jovem de mochila, olhos cansados e expressão perdida.
— O senhor é Ernesto? — perguntou.
Ele confirmou com um aceno gentil.
— Minha avó… era amiga da sua esposa. Antes de falecer, pediu que eu viesse aqui algum dia. Disse que eu
encontraria um “coração limpo e um café que escuta”. Eu… só consegui vir agora.
Ernesto não perguntou mais nada. Apenas sorriu e abriu o portão.
Depois, com um gesto quase automático, puxou a cadeira de Rosa para a jovem se sentar.
— Pode ser aqui?
Ela hesitou. Sentou-se. E, pela primeira vez em anos, aquela cadeira recebeu novo peso, novo corpo, nova
história.
Conversaram pouco. Mais silêncios do que frases. Mas foi o suficiente.
Ela chorou ao falar do pai ausente. Ele riu ao lembrar dos bolos que Rosa queimava aos domingos. E juntos
partilharam algo que não cabia em palavras: a certeza de que existe um tipo de encontro que só acontece
quando a alma está de verdade presente.
Na hora de ir embora, ela o abraçou forte.
— Obrigada.
— Eu que agradeço — disse Ernesto, com os olhos marejados.
Naquele dia, ao recolher as xícaras, ele não chorou como de costume.
Em vez disso, colocou uma flor no centro da mesa.
A partir de então, a cadeira passou a receber visitas. Às vezes era a jovem, outras vezes vizinhos, sobrinhos,
até um carteiro que se encantou pelo aroma do café.
A cadeira de Rosa, antes altar da ausência, tornara-se ponto de encontro da vida.
Mas Ernesto sabia: nada daquilo teria acontecido se ele não tivesse persistido no gesto.
Se ele tivesse deixado de arrumar a cadeira. Se tivesse aceitado o vazio como fim.
Mas não.
Ele acreditava na presença que não se vê. Na fé que não precisa de plateia. No gesto que se repete não por
teimosia, mas por fidelidade àquilo que é sagrado.
Essa é a prática ensinada pelos que caminham com sabedoria:
Fazer o que precisa ser feito, mesmo quando não há aplauso.
Permanecer firme na delicadeza.
Manter acesa a luz, ainda que ninguém veja.
Charuri chamaria isso de disciplina interior.
Nós chamamos de amor que sabe esperar.
E o Sagrado de Cada Dia revela: não há gesto pequeno quando feito com alma.
Mesmo uma cadeira arrumada pode ser um portal.
Ernesto continua seu ritual. Agora, a cada manhã, arruma duas cadeiras. Uma para Rosa. Outra para quem
chegar.
Ele aprendeu que quando a gente honra o
invisível, a vida se encarrega de surpreender o
visível.
Porque no fundo… a cadeira nunca esteve vazia