Ela ficou ali, esfriando sozinha, como quem espera por alguém que não volta mais.
Era noite já, mas o bule ainda fumegava. A mesa posta para dois, como sempre foi. O ritual era simples: o chá de erva-doce às nove, com silêncio cúmplice e olhares leves. Nenhum deles precisava dizer muito. Nunca precisaram.
Mas naquela noite, só havia uma cadeira ocupada.
Ela arrumou a toalha, aqueceu a água, pegou a xícara favorita dele — a de cerâmica azul, com lasca no canto — e a colocou no lugar de sempre. Costumes não morrem com as pessoas. Levam tempo para se desapegar dos gestos.
O corpo dele já não habitava a casa. Mas ainda era possível ouvi-lo nos talheres, nas portas rangendo, no estalar da madeira no corredor.
A xícara esfriou.
Ela permaneceu em silêncio, como quem conversa com o que não pode ser tocado.
O vapor cessou. O chá ficou raso, amargo, frio.
Mas ela não retirou a xícara da mesa.
O Evangelho diz que, após a ressurreição, Jesus foi reconhecido ao partir o pão — não pela face, nem pela voz, mas pelo gesto.
Ela também esperava esse gesto. Talvez, no fundo, quisesse crer que ele apareceria como no terceiro dia. Ou que o amor, mesmo depois da morte, pudesse assoprar de novo a água quente da vida.
Mas ele não veio.
A única coisa que veio… foi o gato. Silencioso. Subiu na cadeira dele e deitou a cabeça ao lado da xícara.
Foi o suficiente.
Ela sorriu pela primeira vez em três meses.
A vida tem dessas delicadezas. Quando o divino não vem em forma de milagre, vem em forma de bicho. Ou de silêncio. Ou de xícara esquecida.
Naquela noite, ela não bebeu o chá.
Mas também não chorou.
Amanhã, talvez prepare duas xícaras novamente.
Mesmo sabendo que só uma será usada.
Porque amar é também isso: continuar a colocar lugares à mesa para quem mora agora em outros cômodos do tempo.
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo.”
— Salmo 23