O barro que aprende a ser vaso

Ela não sabia que estava quebrando.
Achava que era só o cansaço comum.
O corpo pedindo cama.
Os olhos pedindo pausa.
O mundo pedindo tudo.
Mas havia rachaduras em lugares que não sangram.
Frestas na alma.
Trincas invisíveis nas certezas que sempre a sustentaram.
O nome dela era Clara.
Nome de luz, mas dias de névoa.
Trinta e oito anos.
Três filhos.
Três demissões nos últimos dois anos.
Um divórcio ainda em processo.
E a sensação de estar… esfarelando.
Foi numa dessas manhãs em que tudo dói sem ter onde doer que ela, sem querer, derrubou o filtro de barro da cozinha.
Não que fosse importante.
Mas era o último presente do pai.
E ao ver o filtro despedaçado no chão, ela chorou como quem enterra uma parte de si.
Naquela tarde, saiu para andar.
Sem rumo.
Passou por ruas que não costumava passar.
Até que se deparou com algo inusitado:
um ateliê de cerâmica.
E, na porta, um letreiro simples:
“Oficina do Vaso Quebrado – aqui o barro renasce”.
Entrou.
Foi recebida por uma mulher de cabelos brancos e mãos manchadas de argila.
Sem falar muito, a ceramista colocou um pedaço de barro nas mãos de Clara.
— Molda o que quiser. Mas sem pressa. O barro só aprende com quem espera.
Ela tentou criar um pote.
Desmanchou.
Tentou de novo.
Desmanchou.
Até que, numa terceira tentativa, criou algo torto, estranho, inacabado — mas seu.
E sorriu.
Porque havia, naquela feiura, algo de bonito: verdade.
Na semana seguinte, voltou.
E voltou.
E voltou.
Aos poucos, a vida começou a girar como a roda de oleiro.
E cada vez que ela moldava, também era moldada.
Cada vez que o barro cedia, ela também cedia.
Cada vez que um vaso trincava, ela aceitava suas próprias falhas com mais ternura.

Clara não reconstruiu sua vida de uma vez.
Nem de forma linear.
Mas entendeu — entre os dedos sujos de argila — que o processo era esse mesmo:
aprender a ser molde e matéria, forma e falha, barro e vaso.
E que, às vezes, o que parece uma queda,
é só o início do recomeço mais profundo.

“O vaso que agora ela bebia água não era perfeito.
Mas era o único que não vazava.”

No livro de Jeremias, o oleiro refaz o vaso quando ele se estraga.
Na vida real, Deus também trabalha com cacos.
Mas sem urgência.
Com mãos pacientes.
E um olhar que vê além da trinca.

por José Ràmmos
Criador do projeto Sagrado de Cada Dia

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