O vento passou e ela não estava sozinha

Dona Áurea já havia feito daquele banco da praça um pequeno altar.
Ia até lá desde que se tornara viúva, dois anos antes. Sempre no mesmo horário: pouco antes do sol se inclinar. Escolhia o banco de madeira mais afastado, sob a sombra do ipê, e ali ficava. Às vezes levava um livro, outras só o silêncio. Mas em todas as tardes, carregava a ausência como se fosse companhia.
A solidão era um animal manso — não mordia mais, mas ainda encostava o focinho frio na alma.
Naquele dia, ela não tinha planos de ir. A chuva da madrugada ainda deixava o chão úmido e o céu oscilava entre nuvens e tímidas aberturas de luz. Mesmo assim, algo a moveu. Como uma lembrança que empurra, um chamado silencioso. Levantou-se, calçou os sapatos de sempre e seguiu.
Ao chegar, o banco estava seco. Nenhum outro ocupado. A praça parecia suspensa no tempo. Nem as folhas se mexiam.
Sentou-se.
Respirou fundo.
E pensou, sem formular as palavras:
“Se você ainda me visita… hoje seria um bom dia.”
Não era uma prece. Era só pensamento.
Ou talvez saudade transformada em sussurro.
Foi então que o vento passou.
Não era forte. Não era frio. Não vinha de nenhuma direção visível.
Mas foi exato.
Um sopro suave que atravessou seus cabelos, percorreu os ombros, deslizou pela lateral do rosto e estendeu-se até o fim do banco.
Ela fechou os olhos.
Não por reflexo, mas por reverência.
Não há como explicar esse tipo de coisa.
Não é alucinação. Nem autoengano.
É presença que se sente sem tocar.
É como se alguém, de alguma camada invisível, dissesse:
“Estou aqui.”
Dona Áurea não chorou. Também não sorriu.
Apenas ficou ali, inteira.
Sentia a falta — mas não a ausência.
E naquele instante, soube:
não estava sozinha.
Os bancos das praças guardam histórias que não estão escritas.
Ali sentam mães que perderam filhos. Amores que nunca aconteceram. Amizades que silenciaram com o tempo.
Mas às vezes, também se senta o invisível.
E há dias em que ele se manifesta.
Não com voz.
Mas com vento.
Ela olhou para o ipê. Algumas flores ainda resistiam aos galhos. Uma delas caiu ao seu lado.
Pousou devagar, como se escolhesse o lugar.
Pegou a flor entre os dedos.
Fechou os olhos mais uma vez.
E disse, em voz quase inaudível:
“Você veio, né?”
Não importa o quanto o tempo passe.
Certas conexões não se rompem.
A matéria se desfaz, o nome desaparece das contas de luz, mas o afeto permanece — atravessando dimensões, fazendo caminho no invisível.
Às vezes, é o vento que traz.
Outras vezes, o cheiro.
Ou uma música.
Ou uma brisa que chega sem sentido… mas cheia de sentido.
Naquela tarde, Dona Áurea voltou para casa mais leve.
Não havia acontecido nada.
Mas tudo tinha mudado.
No dia seguinte, voltaria ao banco.
E talvez levasse pão para os pássaros.
Ou apenas sua alma aberta.
Porque agora ela sabia:
quando o vento passa assim…
é sinal de que o amor ainda sopra.
Por José Ràmmos

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