A escuridão nunca pede licença. Ela chega como tempestade inesperada, apagando as luzes conhecidas e deixando apenas o silêncio. É nesse instante que muitos se perdem… mas também é quando alguns descobrem que carregam um brilho próprio, um brilho que não depende de holofotes, mas que nasce da própria essência.
O apagão
Clara, costureira de um bairro antigo, vivia cercada por linhas, tecidos e o tic-tic constante da máquina de costura. Trabalhava até tarde quase todos os dias, embalada pela claridade elétrica e pelo rádio antigo que tocava baixinho na prateleira.
Numa noite de inverno, enquanto ajustava a barra de um vestido de noiva, um estalo seco ecoou pelas paredes e a luz sumiu de repente. A cidade inteira mergulhou numa escuridão densa.
No primeiro instante, o silêncio pareceu gritar. O rádio calou, o ventilador parou e até o som da rua desapareceu. Clara ficou imóvel, como se precisasse esperar a claridade voltar para poder respirar.
A herança esquecida
Ao tatear pelo ateliê, os dedos tocaram a gaveta onde guardava coisas antigas: botões solitários, fitas desbotadas, bilhetes de clientes de muitos anos atrás. E lá estava ela: uma lamparina de óleo, herança de sua avó paterna.
Clara lembrou-se de quando criança, ainda nos tempos em que a eletricidade falhava com frequência, a avó acendia aquela chama para costurar remendos ou bordar panos de prato. “A luz é boa, mas é na sombra que a gente enxerga melhor o que vem de dentro”, dizia a velha senhora.
A frase ecoou na memória. Clara encontrou fósforos, encheu o reservatório com o pouco de óleo que restava e acendeu o pavio. Uma chama pequena dançou, iluminando o vestido com um dourado suave.
O palco silencioso
Sentou-se diante da peça e começou a costurar. Na ausência de luz elétrica, o barulho da rua parecia mais distante, e ela passou a perceber sons íntimos: o rangido da tesoura, o roçar da agulha, o sopro de seu próprio fôlego. Cada ponto exigia mais atenção, cada movimento era mais lento, quase ritualístico.
Lembrou-se de noites da infância, quando ficava observando a avó trabalhar em silêncio. Aquelas mãos, marcadas por anos de esforço, moviam-se com calma, como se cada ponto fosse uma prece. Naquele momento, Clara sentiu que repetia não apenas um gesto, mas um legado.
A revelação
Horas se passaram sem que ela percebesse. Quando finalmente terminou, segurou o vestido contra a luz da lamparina e percebeu algo diferente: as costuras pareciam mais firmes, os detalhes mais vivos. Era como se a falta de claridade tivesse aguçado outros sentidos, permitindo que ela colocasse mais alma em cada ponto.
Na manhã seguinte, ao entregar o vestido, o cliente o segurou por um tempo, sem dizer nada. Depois, olhou para Clara e disse:
— Este vestido tem vida. Não sei explicar, mas parece… iluminado.
Clara sorriu. Ela sabia exatamente de onde vinha aquele brilho.
O sentido da escuridão
A vida é cheia de apagões, momentos em que tudo o que conhecíamos deixa de funcionar. Perdas, despedidas, mudanças inesperadas… Nessas horas, é natural querer esperar pela “luz voltar” para continuar. Mas, como Clara descobriu, muitas vezes é justamente na ausência de luz que enxergamos mais nitidamente quem somos e do que somos capazes.
As adversidades são o palco silencioso onde talentos escondidos se revelam. São o pano de fundo contra o qual a nossa luz interior ganha destaque. É como no céu: as estrelas sempre estiveram lá, mas só as vemos porque existe a noite.
Memórias como farol
Clara deixou a lamparina sobre a mesa de trabalho. Não como objeto decorativo, mas como lembrete. Sempre que olhava para ela, recordava a noite do apagão e a frase da avó. Entendeu que cada vez que a vida “apagasse as luzes”, ela tinha dentro de si a capacidade de acender uma chama.
Percebeu também que aquele vestido marcou o início de um novo olhar sobre o seu ofício. Costurar já não era apenas cumprir prazos ou seguir moldes, mas deixar que cada peça carregasse algo invisível: paciência, silêncio e presença.
A luz que nasce dentro
Não escolhemos quando a escuridão chega, mas podemos escolher o que fazer quando ela vem.
Algumas pessoas se desesperam, outras se recolhem, e poucas decidem procurar uma chama, mesmo que pequena. Essas são as que descobrem que, no fundo, nunca estiveram completamente no escuro.
“As noites mais escuras são o palco dos brilhos mais raros.”
— Sagrado de Cada Dia
Que a sua escuridão também seja convite para brilhar. E que, como Clara, você mantenha por perto o que lhe lembra que a luz pode nascer de dentro — e iluminar tudo ao redor.
Por José Ràmmos

O silêncio no fundo do mar
Há silêncios que assustam. Há silêncios que confortam. E há um silêncio tão profundo que se transforma em revelação. Quem